Consolo no Sofrimento
(Um sermão sobre a preparação para a morte e um sermão sobre a
contemplação do santo sofrimento de Cristo)
Martinho Lutero
Coleção Lutero para Hoje
Editora Sinodal/Editora Concórdia
Ano 2000
Adaptação do texto: Rui J. Bender
Digitalizado
e Revisado por:
PerolaGospel
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O texto "Consolo no sofrimento" é uma
versão atualizada dos originais "Um Sermão sobre a Preparação para
a Morte" e "Um Sermão sobre a Contemplação do Santo Sofrimento de
Cristo", que se encontram em "Obras Selecionadas de Martinho
Lutero", volume 1, Editora Sinodal, São Leopoldo/RS, Concórdia Editora,
Porto Alegre/RS, 1987.
A Comissão Interluterana de Literatura (CIL) cedeu
gentilmente a permissão para a publicação deste texto.
Índice
Apresentação
Martim Lutero foi pastor, e
um pastor busca no Evangelho resposta para
questões que afligem o ser humano: morte, dor e
sofrimento. Foram muitas as oportunidades nas quais, ao longo de toda a sua vida, teve que aconselhar pessoas que se debatiam
com o medo da morte, com a dor e o sofrimento. Aqui são apresentados
dois exemplos: Um sermão sobre a preparação para a morte e Um
sermão sobre a contemplação do santo
sofrimento de Cristo.
No primeiro dos sermões,
Lutero conversa com uma pessoa, cuja principal
preocupação é a morte. Seu mundo, aliás, estava
impregnado pela realidade da morte. Muitos
artistas pintaram, ao longo da Idade Média, cenas nas
quais o "último inimigo" do ser humano vem para ceifar-lhe a vida. A
própria realidade da morte estava muito presente. Seguidas vezes, irrompia a peste; depois, os exércitos
turcos representavam uma constante
ameaça. Por todas as partes, literalmente, via-se a presença da morte.
Nos hinos, dizia-se que em meio à vida estamos cercados pela
morte. Indo de encontro às preocupações dos crentes, muitos teólogos escreveram
livros nos quais se fala da ars moriendi, da arte de morrer. Em 1519, um
conselheiro do príncipe-eleitor da Saxônia de nome Marcos Schart também se
dirigiu a Lutero, pedindo-lhe orientação sobre como nos devemos preparar para a
morte.
Lutero procurou
transmitir consolo a partir da cruz de Jesus Cristo. Neste sentido, afastou-se
de uma tendência da época que era a de descrever às pessoas a morte com suas
mais cruéis faces. De maneira muito sóbria, ele aponta para Jesus Cristo,
aquele que na cruz venceu pecado, inferno e morte. Quem conhece Jesus Cristo em
sua vida e com ele vive pode com ele viver também na morte. Durante toda a
vida, temos sinais visíveis da presença de Cristo. Nestes sinais visíveis está
documentada a sua presença: trata-se dos sacramentos. Como Lutero, em 1519,
ainda não rompera com a doutrina sacramental da Idade Média, menciona o
Batismo, a Eucaristia, a Confissão e Absolvição dos pecados e a Extrema-unção.
Através do Batismo temos parte em Cristo, na Santa Ceia recebemos a Cristo,
através da Confissão e da Absolvição experimentamos perdão e reconciliação, na
Extrema-unção somos fortalecidos. Os sacramentos são evidências de que com sua
vida, sua obediência e seu amor Jesus assumiu sobre si morte, pecado e inferno.
Nos sacramentos, aprendemos a confiar na promessa de Deus. Quando os recebemos,
não nos devemos deixar dominar pela questão relativa a nossa dignidade, mas
pela palavra e pelo sinal que nos oferecem. A fé nos sacramentos é que torna
sua recepção digna e seu recebimento adequado. Neles experimentamos a comunhão
com todos os santos e anjos. Ela nos fortalece. Na hora derradeira, dependemos
da fé na promessa e não de nossas forças. Notamos nas palavras e na intenção de
Lutero que ele soube pensar toda a problemática da morte a partir da
justificação. Quem experimenta através dos sacramentos que é aceito por Deus
assim como é, este é libertado de seus medos e conflitos e aferra-se a Cristo.
Isso é o que importa, tudo o mais não importa, quando a morte se coloca diante de
nós. A certeza da justificação não só nos deixa viver, mas também morrerem
Cristo.
No Sermão sobre a contemplação do santo sofrimento
de Cristo, Lutero exercita o que poderíamos denominar de piedade luterana.
Esta se centra no sofrimento (paixão), morte e ressurreição de Jesus.
Conseguimos entender sua novidade quando lembramos que a contemplação foi para
muitas ordens religiosas da Idade Média uma fonte inspirada da fé, tornando-se,
afinal, a mais popular das devoções cristãs. Em época de muito sofrimento,
cristãos contemplavam o sofrimento de Cristo e identificavam seus sofrimentos
com os do Salvador. Contemplando os sofrimentos de Cristo, eram superados os
próprios, e o cristão chegava a se tornar imitador de Cristo em seus
sofrimentos.
Na época da Paixão de 1519, Lutero pôde
posicionar-se contra a piedade e encenações da Paixão muito superficiais,
afirmando que a meditação da Paixão deve levarão reconhecimento e à confissão
do pecado daquele que medita. Ele deve reconhecer que é co-responsável pelo sofrimento
de Cristo. Tal conhecimento, porém, é graça que nos é concedida por Deus.
Lutero, porém, não pára no reconhecimento e na confissão do pecado. Num segundo
momento, quem contempla deve lançar, em fé, sobre Cristo todo o pecado
descoberto, pois foi Ele e não o ser humano quem o venceu na Páscoa. A certeza,
porém, de que fomos libertados de todos os nossos pecados nos é dada por Deus.
Libertos de nossos pecados, podemos viver seguindo o exemplo do Cristo
sofredor. Aqui, novo acento do Evangelho da graça e do amor de Deus permitiu
que uma velha prática fosse reinterpretada e significasse consolo evangélico.
Em Cristo podemos ser libertados da fixação em nosso sofrimento para viver a
partir do sofrimento de Cristo.
Martin N. Dreher
Um sermão sobre a preparação para a morte
1
A morte é uma
despedida deste mundo e de todas as suas ocupações. Por isso é necessário que o
ser humano organize claramente seus bens temporais: a forma como estes devem
ficar ou como ele quer pô-los em ordem. Ele deve fazer isso para que, após sua
morte, não haja motivo para briga, desentendimento ou alguma outra confusão
entre seus parentes. E uma despedida corporal ou exterior deste mundo. O ser
humano abandona e se despede de seus bens.
2
Em segundo lugar, também precisamos despedir-nos
espiritualmente. Quer dizer: somente por causa de Deus devemos perdoar com amor
todas as pessoas, por mais que nos tenham ofendido. Por outro lado, somente por
causa de Deus também precisamos querer o perdão de todas as pessoas. Sem
dúvida, magoamos muitas delas, pelo menos com algum mau exemplo ou com menos
boas obras do que devíamos a elas, segundo o mandamento do amor fraternal
cristão. Temos que fazer isso para que a alma não se agarre a nada na terra.
3
Quando nos despedimos de todos na terra, então
temos que nos voltar a Deus somente. E para lá que se dirige e para lá que nos
leva o caminho da morte. Ali começa a porta estreita, o caminho apertado para a
vida (cf. Mateus 7.14). Cada um deve aventurar-se com boa vontade por esse
caminho. Pois este certamente é muito estreito, mas não é longo. Aqui acontece
o mesmo que ocorre no nascimento de uma criança. Esta nasce, com perigo e
medos, da pequena moradia no ventre de sua mãe para dentro deste grande céu e
desta grande terra. Isto é, ela vem a este mundo. Da mesma forma, o ser humano
sai desta vida pela porta estreita da morte. O céu e o mundo em que vivemos
agora são considerados grandes e amplos. Mas tudo é muito mais apertado e
menor, comparado ao céu que nos espera, do que é o ventre materno comparado a
este céu. Por isso a morte dos queridos santos é chamada de novo nascimento.
Também por isso o dia dedicado a eles é chamado de natale em latim.
Significa o dia de seu nascimento. No entanto, o aperto da passagem para a
morte faz esta vida parecer ampla e aquela outra, estreita. Precisamos
acreditar nisso e aprender do nascimento corporal de uma criança. Cristo diz:
"Uma mulher, quando está para dar à luz, sente medo. Mas depois de dar à
luz, já não se lembra do medo, porque, através dela, um ser humano nasceu ao
mundo" (João 16.21). Vale o mesmo para a morte: temos que nos libertar do
medo e saber que depois vai haver muito espaço e alegria.
4
Os preparativos para essa viagem consistem, em
primeiro lugar, em fazer uma confissão sincera (especialmente dos pecados
maiores e daqueles que, no momento, conseguimos lembrar com o máximo esforço).
Consistem em providenciar os santos sacramentos cristãos do santo e verdadeiro
Corpo de Cristo e da Extrema-unção. Os arranjos também consistem em querer estes
sacramentos com devoção e recebê-los com muita confiança, à medida do possível.
Onde isso não é possível, o anseio por esses sacramentos deve, mesmo assim, ser
consolador. Não devemos nos apavorar demais se não pudermos recebê-los. Cristo
diz: "Todas as coisas são possíveis a quem crê" (Marcos 9.23). Os
sacramentos não são nada mais do que sinais que servem à fé e estimulam a crer,
como ainda veremos. Sem essa fé, eles não servem para nada.
5
Em todo caso, temos que valorizar com toda a
seriedade e esforço os santos sacramentos e honrá-los, confiar neles livre e
alegremente. Devemos colocá-los na balança de tal modo que, comparados ao
pecado, à morte e ao inferno, eles tenham muito mais peso. Também precisamos
preocupar-nos muito mais com os sacramentos e suas virtudes do que com os
pecados. Mas devemos saber como prestar a devida honra aos sacramentos e quais
são as suas virtudes. Honrá-los significa crer que é verdadeiro e que me
acontecerá aquilo que os sacramentos representam e tudo o que Deus fala e mostra
neles. Portanto, devemos dizer juntamente com Maria, a mãe de Deus, com uma fé
firme: "Que me suceda conforme tuas palavras e teus sinais" (Lucas
1.38). O próprio Deus fala neles e coloca sinais por intermédio do sacerdote.
Por isso não se poderia desonrar Deus mais em sua palavra e obra do que
duvidando se é realmente verdade. Também não se poderia prestar a Deus maior
honra do que acreditar que é verdade e confiar nisso espontaneamente.
6
Para reconhecer as virtudes dos sacramentos precisamos conhecer inicialmente os defeitos que são
combatidos por elas e contra os quais aquelas virtudes nos foram dadas.
São três: a primeira é a imagem horrível da morte; a segunda, a imagem pavorosa
e multifacetada do pecado; a terceira, a imagem insuportável e inevitável do
inferno e da condenação eterna. Ora, cada uma dessas três imagens cresce e fica
grande e forte por causa daquilo que lhe é acrescentado. A morte fica enorme e
horrível, porque a natureza medrosa e desanimada grava essa imagem fundo demais
e a mantém exageradamente diante dos olhos. O diabo acrescenta a sua parte a
isso, para que o ser humano se concentre profundamente na aparência e imagem
terrível da morte. Assim este fica preocupado, vulnerável e medroso. Então o
diabo certamente vai apresentar-lhe todas as mortes terríveis, inesperadas e
más que uma pessoa já viu, ouviu ou sobre as quais já leu. Além disso, ele
também incluirá a ira de Deus, como ela atormentou e arruinou os pecados no
passado. Com isso o diabo quer induzir a natureza medrosa ao temor da morte, ao
amor pela vida e à preocupação com ela. Dessa forma, o ser humano, cheio de
tais pensamentos, vai esquecer Deus, fugir da morte e odiá-la e, no final, ser
desobediente a Deus. Quanto mais profundamente se encara e reconhece a morte,
tanto mais difícil e perigoso é o ato de morrer. Em vida, deveríamos ocupar-nos
com a idéia da morte e defrontar-nos com ela enquanto ainda está longe e não
nos angustia. É perigoso e de nada adianta ocupar-nos com ela na hora de
morrer. Então a morte, por si só, já é forte demais. Devemos afastar sua imagem
de nossa mente e negar-nos a vê-la. Portanto, a morte tem seu poder e sua força
na fraqueza de nossa natureza. Também porque ela é encarada de forma exagerada
e numa época inoportuna.
7
Igualmente o pecado cresce e fica grande porque o encaramos
em demasia e pensamos nele em excesso. Contribui para isso a fraqueza de nossa
consciência, que se envergonha diante de Deus e se acusa horrivelmente. Aí o
diabo encontrou a arapuca que procurava: ele coloca em apuros; torna os pecados
tão numerosos e grandes; põe diante de nossos olhos todos aqueles que pecaram e
os que foram condenados com bem menos pecados. Assim, mais uma vez, o ser
humano vai desanimar ou não querer morrer. Dessa forma, vai esquecer Deus e continuar
desobediente até a morte. Isso acontece principalmente porque o ser humano
acredita que, naquele momento, deve concentrar-se no pecado. Ele crê que é
certo e útil ocupar-se com isso. Então ele descobre que não está preparado e
não tem jeito, assim que todas as suas boas obras se transformaram em pecados.
Isso tem forçosamente como conseqüência um morrer desgostoso, desobediência à
vontade de Deus e condenação eterna. Não há motivo nem tempo para examinar o
pecado naquela hora. Isso deve ser feito durante a vida. Assim, o espírito
maligno muda o sentido de tudo. Em vida deveríamos ter sempre diante dos nossos
olhos a imagem da morte, do pecado e do inferno (conforme diz o Salmo 51.3:
"Meus pecados estão sempre diante dos meus olhos"). O espírito
maligno fecha os nossos olhos e esconde essas imagens de nós. Na hora da morte,
quando deveríamos ter diante de nossos olhos apenas a vida, a graça e a
salvação, ele abre os nossos olhos. Assusta-nos com as imagens vindas numa
época inoportuna, para que não vejamos as imagens corretas.
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Também o inferno fica grande e cresce quando nos
concentramos demais e refletimos constantemente sobre ele fora da época
adequada. Colabora muito para isso o fato de não se conhecer o julgamento de
Deus. O espírito maligno estimula a alma a sobrecarregar-se com uma curiosidade
desnecessária e inútil. Mais ainda: com a forma mais perigosa de explorar o
mistério do plano de Deus para saber se a alma é predestinada ou não para a
salvação. Aqui o diabo exerce sua última, maior e mais astuciosa arte e
habilidade. Pois com isso leva o ser humano (se este não se prevenir) a
colocar-se acima de Deus, para que procure sinais da vontade divina e fique
impaciente porque não fica sabendo se é predestinado. Isso faz o ser humano
suspeitar de seu Deus, a ponto de quase desejar um outro deus. Em suma, aqui o
diabo planeja apagar o amor a Deus com uma tempestade e despertar o ódio contra
Deus. Quanto mais o ser humano segue o diabo e permite tais pensamentos, tanto
mais perigosa é a sua posição. Por fim, ele não consegue mais resistir. Cai no
ódio e na blasfêmia contra Deus.
Se quero saber se sou predestinado, isso
significa que quero saber tudo o que Deus sabe e igualar-me a ele. Assim Deus
não sabe nada mais do que eu e não é Deus. Não deve ele estar acima de mim no
saber? Então o diabo nos mostra quantos pagãos, judeus e cristãos se perdem.
Com tais pensamentos perigosos e inúteis estes chegam a fazer com que o ser
humano fique com má vontade, mesmo que no mais morresse de bom grado. Ser
atormentado por pensamentos sobre a sua predestinação significa ser atormentado
pelo inferno. Há muitos lamentos sobre isso nos Salmos. Quem é vitorioso nesse
ponto venceu de uma só vez inferno, pecado e morte.
9
Devemos esforçar-nos ao máximo para não convidar
nenhuma dessas três imagens a entrar em nossa casa. Também não devemos desenhar
a imagem do diabo por sobre a porta. Por si próprias, essas imagens vão
irromper com violência e querer apoderar-se totalmente do coração através de
seu aspecto, seus debates e suas manifestações. Onde isso acontece, o ser
humano está perdido. Deus foi esquecido completamente, pois essas imagens não
cabem neste tempo, exceto para serem combatidas e expulsas. Sim, onde elas
estiverem sozinhas, sem deixar transparecer outras imagens, seu único destino é
o inferno, entre os diabos.
Quem quiser combater aquelas imagens com sucesso
e expulsá-las não pode contentar-se apenas em discutir e brigar com elas. Elas
serão fortes demais para ele, e a coisa vai piorar. O jeito é livrar-se delas por
completo e não ter nada a ver com elas. Mas como acontece isso? Da seguinte
forma: você deve ver a morte na vida, o pecado na graça, o inferno no céu. Não
deve deixar-se afastar dessa maneira de encarar ou ver as coisas. Mesmo que
todos os anjos, todas as criaturas, mesmo que aparentemente o próprio Deus
apresente algo diferente a você. Não são eles que fazem isso. E o espírito
maligno que provoca essa impressão. Como se deve agir então?
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Você não deve encarar a morte em si mesma, nem em
você ou em sua natureza. Tampouco naqueles que foram mortos pela ira de Deus e
vencidos pela morte. Se você fizer isso, está perdido e é derrotado juntamente
com eles. Ao contrário, você tem que desviar energicamente seus olhos, os
pensamentos de seu coração e todos os seus sentidos dessa imagem. Deve encarar
a morte com ânimo e cuidado apenas naqueles que morreram na graça de Deus e
derrotaram a morte, sobretudo em Cristo, depois em todos os seus santos. Nessas
imagens, a morte não vai parecer horrível e aterradora para você, mas sim
desprezada e morta, sufocada na vida e derrotada. Pois Cristo não é nada mais
do que pura vida, e seus santos também. Quanto mais profunda e intensamente
você gravar essa imagem e a encarar, tanto mais diminuirá a imagem da morte.
Ela desaparecerá por si mesma, sem luta e sem briga. Assim o seu coração
encontrará paz e poderá morrer tranqüilamente com Cristo e em Cristo. Assim
está escrito em Apocalipse 14.13: "Bem-aventurados são os que morrem no
Senhor Cristo". Números 21.6ss aponta para isso: quando mordidos pelas
cobras venenosas, os filhos de Israel não precisavam combatê-las; apenas tinham
que olhar para a serpente morta de bronze. Então as cobras vivas caíam por si
mesmas e morriam. Da mesma forma você deve preocupar-se apenas com a morte de
Cristo. Então encontrará a vida. Mas se você encarar a morte em outro lugar,
ela o mata com grande agitação e tormento. Por isso Cristo diz: "No mundo
vocês terão inquietação. Em mim, porém, terão a paz" (João 16.33).
11
De igual modo, você não deve encarar o pecado dos
pecadores. Não deve fazer isso em sua própria consciência nem naqueles que
ficaram definitivamente em pecado e foram condenados. Caso contrário, você
ficará para trás e será derrotado. Você deve desviar seus pensamentos disso e
não encarar o pecado senão na imagem da graça. Você deve gravar essa imagem com
todas as forças e tê-la diante dos olhos. A imagem da graça não é outra coisa
senão Cristo na cruz e todos os seus queridos santos.
Como isso deve ser
entendido? Cristo tira de você o seu pecado na cruz, carrega-o por você e o
afoga - isto é graça e misericórdia. Crer firmemente nisso, tê-lo diante dos
olhos e não duvidar disso - é isto o que significa reparar na imagem da graça e
gravá-la. Da mesma forma, todos os santos também assumem em seu sofrimento e
morte os seus pecados. Sofrem e trabalham por você, como está escrito:
"Que cada um carregue a carga do outro; assim vocês cumprem o mandamento
de Cristo" (Gálatas 6.2). Igualmente ele mesmo diz em Mateus 11.28:
"Venham a mim todos vocês que estão sobrecarregados e se afadigam; eu
quero ajudá-los". Assim você pode encarar o seu pecado com segurança, fora
de sua consciência. Então pecados não são mais pecados. Estão derrotados e
devorados em Cristo. Cristo assume a sua morte e a afoga, para que ela não faça
mais mal a você. Você deve acreditar que ele faz isso por você e ver a sua
própria morte nele, não em você mesmo. Da mesma maneira ele também assume os
seus pecados e os derrota para você em sua justiça, por pura graça. Se você acredita
nisso, eles não farão mais mal a você. Assim Cristo, a imagem da vida e da
graça, é nosso consolo contra a imagem da morte e do pecado. Paulo confirma
isso em 1 Coríntios 15.57: "Louvor e graças a Deus por nos ter dado, em
Cristo, vitória sobre o pecado e a morte".
12
Você não deve observar o inferno e a eternidade
das aflições, juntamente com a predestinação, em você mesmo, nem nela própria,
tampouco naqueles que foram condenados. Também não deve preocupar-se com tantas
pessoas em todo o mundo que não foram predestinadas [para a salvação]. Se você
não tomar cuidado, essa imagem logo o derrubará e atirará ao chão. Por isso
você precisa apelar para a força, manter os olhos bem fechados diante dessa
visão. Ela é completamente inútil, mesmo que você ficasse ocupado com isso
durante mil anos. De repente, ela o arruina. Você deve deixar que Deus seja
Deus, que ele saiba mais sobre você do que você mesmo. Olhe por isso a imagem
celestial: Cristo. Por sua causa ele desceu ao inferno e foi abandonado por
Deus, como alguém condenado eternamente, quando disse na cruz: "Eli, Eli,
lama asabthani? Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?" (Mateus
27.46) Nesta imagem, o seu inferno está derrotado, e sua predestinação incerta
passa a ser certa. Se você se preocupa apenas com isso e acredita que isso
aconteceu por sua causa, certamente você é salvo nessa mesma fé. Por isso não
deixe que essa imagem seja tirada dos seus olhos e procure-se em Cristo
somente, não em você próprio. Então você se encontrará eternamente nele.
Portanto, quando você olha para Cristo e todos os seus santos e lhe agrada a
graça de Deus e você permanece firme nesse contentamento, também você já está escolhido. Gênesis 12.3 diz: "Todos os
que te abençoam serão abençoados". Mas se você não se apegar apenas
a isso e recair em você mesmo, vai nascer em você uma má vontade para com Deus
e seus santos. Você não achará nada de bom em você mesmo. Tome cuidado com
isso. É nessa direção que o espírito maligno vai levá-lo com muitas artimanhas.
13
Juízes 7.16ss aponta para essas três imagens ou
formas de luta: Gideão atacou os midianitas à noite com 300 homens em três
frentes. Mas ele não fez mais do que mandar tocar trombetas e quebrar vasos de
barro com uma tocha dentro. Assim os inimigos fugiram e estrangularam a si
próprios. Da mesma forma, morte, pecado e inferno fogem com todas as suas
forças se cultivamos as imagens luminosas de Cristo e de seus santos à noite -
isto é, na fé, que não vê nem quer ver as imagens malignas. Também fogem se nos
animamos e fortalecemos com a palavra de Deus como que com trombetas. Neste
sentido, Isaías 9.4 mostra, de forma muito bonita, a mesma comparação contra as
mesmas três imagens. Diz a respeito de Cristo: "Tu venceste o peso de seu
fardo, a vara de suas costas, o cetro de seu opressor, como nos tempos dos
midianitas vencidos por Gideão". É como se dissesse: "O pecado do seu
povo (que é um grande peso em sua consciência) e a morte (que é uma vara ou um
castigo que fere suas costas) e o inferno (que é um cetro e poder do opressor,
com que se exige pagamento eterno pelo pecado) - tudo isso você venceu, como
aconteceu nos tempos de Midiã, isto é, pela fé, pela qual Gideão afugentou os
inimigos sem um único golpe de espada". Quando ele fez isso? Na cruz.
Então Cristo preparou a si mesmo para nós como uma tripla imagem a ser
apresentada à nossa fé contra aquelas três imagens. O espírito maligno e nossa
natureza nos atormentam com aquelas imagens para arrancar-nos da fé. Cristo é a
imagem viva e imortal contra a morte que ele sofreu. Mas ele a venceu em sua
vida através de sua ressurreição dos mortos. Ele é a imagem da graça de Deus
contra o pecado. Cristo assumiu o pecado e o venceu através de sua insuperável
obediência. Ele é a imagem celestial. Abandonado por Deus como um condenado,
ele venceu o inferno através de seu amor todo-poderoso. Assim testemunhou que é
o Filho mais querido e que tornou isso propriedade de todos nós, se assim
cremos.
14
Tudo isso ainda não é o bastante. Cristo não
apenas venceu o pecado, a morte e o inferno e nos chamou para acreditar nisso.
Para nosso maior consolo, ele próprio sofreu e venceu a angústia que essas
imagens provocam em nós. Ele foi atormentado pela imagem da morte, do pecado e
do inferno tanto quanto nós. Foi colocado diante da imagem da morte quando os
judeus disseram: "Que ele desça agora da cruz! Curou a outros; que agora
se ajude a si mesmo" (Mateus 27.40,42; Marcos 15.30ss). É como se
dissessem: "Veja, aí você tem a morte diante de seus olhos. Você precisa
morrer; contra isso nada pode ser feito". Dessa forma, o diabo coloca uma
pessoa moribunda diante da imagem da morte. Ele abala a natureza fraca com a
imagem aterradora.
Os judeus também confrontaram Jesus com a imagem
do pecado: "Ele curou a outros. Se é Filho de Deus, então desça",
etc. (Mateus 27.40.42) É como se dissessem: "Sua obras foram falsas e não
passaram de mentira. Ele não é filho de Deus, mas do diabo, a quem pertence de
corpo e alma. Nunca fez nada de bom, cometeu apenas maldade".
A imagem do inferno foi lançada contra Jesus
quando os judeus disseram: "Ele confia em Deus; vejamos se Deus o redime;
ele diz ser Filho de Deus" (Mateus 27.43). É como se dissessem: "O
lugar dele é o inferno. Deus não o predestinou; ele está condenado para sempre.
Não adianta confiar nem esperar; é tudo em vão".
Os judeus colocaram Cristo diante dessas três
imagens de forma desordenada. Também o ser humano é atacado de maneira
desordenada pelas mesmas imagens de uma só vez, para que seja confundido e caia
logo em desespero. É assim como o Senhor descreve a destruição de Jerusalém em
Lucas 19.43s: os inimigos cercam a cidade com uma trincheira, de modo que seus
moradores não podem sair - isto é a morte. Os inimigos amedrontam e perseguem
os moradores em todos os lugares, de modo que não podem ficar em lugar algum -
isto são os pecados. Em terceiro lugar, os inimigos arrasam Jerusalém e não
deixam pedra sobre pedra - isto são o inferno e o desespero.
Como vemos, Cristo fica em
silêncio diante de todas essas palavras e imagens horríveis. Não luta contra
elas, faz de conta que não as ouve ou vê. Não responde a nada (se
tivesse respondido, apenas teria dado motivo para que berrassem e se
manifestassem com força e ódio maiores ainda). Cristo só presta atenção à
vontade mais amada de seu Pai. Ele presta tanta atenção, que esquece sua morte,
seu pecado, seu inferno, que haviam sido lançados contra ele. Ele intercede por
eles (cf. Lucas 23.34), pela morte, pelo pecado e pelo inferno deles. Assim
também nós devemos deixar que as mesmas imagens nos ataquem e nos abandonem,
como queiram ou possam. Precisamos pensar apenas em nos apegar à vontade de
Deus. Esta quer que nos agarremos a Cristo e acreditemos firmemente que nossa
morte, pecado e inferno foram vencidos nele em nosso favor. Não podem fazer
nenhum mal a nós. Somente a imagem de Cristo está em nós, e nós conversamos e
negociamos apenas com ele.
15
Voltamos agora aos santos sacramentos e suas
virtudes. Temos que aprender para que servem e usá-los. A pessoa a quem são
concedidos a graça e o tempo de se confessar, ser absolvida, receber a
Eucaristia e a Extrema-unção tem numerosos motivos para amar Deus, louvá-lo e
agradecer-lhe. Também para morrer com alegria, desde que confie e acredite de
forma consoladora nos sacramentos. Pois nos sacramentos seu Deus, o próprio
Cristo, age, fala e atua com você através do sacerdote. Então não acontecem
obras ou palavras humanas. O próprio Deus promete a você tudo o que aqui foi
dito agora sobre Cristo. Ele quer que os sacramentos sejam um sinal e uma prova
disso: a vida de Cristo assumiu e venceu a sua morte; a obediência de Cristo
derrotou o seu pecado; e o amor de Cristo venceu o seu inferno. Além disso,
você é incorporado e unido pelos mesmos sacramentos a todos os santos e entra
na verdadeira comunhão dos santos. Assim eles morrem com você em Cristo,
carregam o pecado e vencem o inferno com você. Conclui-se disso que os
sacramentos - isto é, palavras externas de Deus, faladas através de um
sacerdote - são um consolo muito grande e um sinal visível do propósito divino.
Devemos apegar-nos a eles com uma fé firme, como se fossem um bom cajado, igual
àquele com que o patriarca Jacó atravessou o Jordão (cf. Gênesis 32.10). Ou
como se fossem uma lanterna pela qual devemos nos orientar e para a qual
devemos olhar com atenção ao trilhar o caminho sombrio da morte, do pecado e do
inferno. O profeta diz: "Tua palavra, Senhor, é uma luz para os meus
pés" (Salmo 119.105). E São Pedro: "Temos uma palavra firme de Deus,
e vocês fazem bem em atendê-la" (1 Pedro 1.19). Não há outra coisa que
possa ajudar na aflição da morte. Com esse sinal são salvos todos aqueles que
alcançam a salvação. Ele aponta para Cristo e sua imagem, para que você possa
dizer contra a imagem da morte, do pecado e do inferno: "Deus me prometeu
e deu um sinal certo de sua graça nos sacramentos: a vida de Cristo venceu a
minha morte em sua morte; sua obediência aniquilou meu pecado em seu
sofrimento, seu amor destruiu meu inferno em seu desamparo. O sinal, a promessa
de minha salvação, não mentirá nem me enganará. Deus o disse e Deus não pode
mentir, nem com palavras, nem com obras". Quem se vangloria e se apóia nos
sacramentos será eleito e predestinado sem preocupação ou esforço.
16
É muito importante que se valorize, se honre e se
confie nos santos sacramentos. Neles acontecem apenas palavras, promessas e
sinais de Deus. Isto quer dizer que não se deve duvidar dos sacramentos nem das
coisas das quais eles são sinais exatos. Se há dúvida sobre isso, está tudo
perdido. Assim como cremos, tal qual vai nos acontecer, diz Cristo (cf. Mateus
21.21). De que adiantaria você imaginar e crer que a morte, o pecado e o
inferno dos outros foram vencidos em Cristo? Afinal, você não acredita que sua
própria morte, seu próprio pecado e seu próprio inferno foram vencidos em seu favor
e que assim você está salvo. Neste caso, o sacramento seria totalmente inútil,
visto que você não acredita naquilo que lhe é revelado, dado e prometido ali.
Mas isso é o pecado mais cruel que pode haver. Por meio dele, o próprio Deus é
tido por mentiroso em sua palavra, seu sinal e sua obra por alguém que fala,
mostra e promete algo que não tem em mente nem quer cumprir. Por isso não se
deve brincar com os sacramentos. Precisa haver a fé, que confia neles e com
alegria se arrisca, baseada naqueles sinais e promessas de Deus. Que tipo de
salvador ou Deus seria este que não pudesse ou não quisesse salvar-nos de
morte, pecado e inferno? Aquilo que o verdadeiro Deus promete e realiza precisa
ser grandioso. Então vem o diabo e dá a entender de modo sutil: "O que
seria de mim se eu tivesse recebido os sacramentos de forma indigna e me
desfeito de tal graça por minha indignidade?" Neste caso, faça você o
sinal da cruz. Não se deixe confundir pela dignidade ou indignidade. Procure
apenas acreditar que são sinais corretos, palavras verdadeiras de Deus. Então
você é e permanece digno. A fé torna a pessoa digna; a dúvida a torna indigna.
Por isso o espírito maligno quer enganá-lo com outra dignidade e indignidade,
para provocar uma dúvida em você. Assim ele pode anular os sacramentos
juntamente com seus efeitos e transformar Deus num mentiroso em suas palavras.
Deus não dá nada a você por causa de sua
dignidade nem edifica sua própria palavra e seus sacramentos em cima dessa
dignidade. Por pura graça, ele edifica você, pessoa indigna, sobre sua palavra
e seu sinal. Você deve agarrar-se a isso e dizer: "Aquele que me dá e me
deu seu sinal e sua palavra - de que a vida, graça e céu de Cristo tornaram
inofensivos minha morte, meu pecado e inferno por mim - é Deus e cumprirá isso.
Se o sacerdote me absolveu, então confio nisso como na palavra do próprio Deus.
Como são palavras de Deus, há de ser verdade. Nisso eu permaneço e nisso eu
morro". Você deve confiar no perdão dos pecados pelo sacerdote tão
firmemente como se Deus enviasse a você um anjo ou um apóstolo especial. Sim,
como se o próprio Cristo perdoasse os seus pecados.
17
Quem recebe os sacramentos tem a seguinte
vantagem: ganha um sinal e uma promessa de Deus em que pode praticar e reforçar
sua fé de que foi chamado na imagem e nos bens de Cristo. Por não terem esses
sinais, as outras pessoas esforçam-se somente na fé e os recebem com o desejo
do coração. Embora também elas sejam salvas se mantiverem a mesma fé. Da mesma
forma, você deve dizer sobre o Sacramento do Altar: "Se o sacerdote me deu
o santo corpo de Cristo, que é um sinal e uma promessa da comunhão com todos os
anjos e santos, sinal e promessa de que me querem bem, cuidam de mim,
intercedem por mim e junto comigo sofrem, morrem, carregam o pecado e vencem o
inferno, então assim será e assim deve ser. O sinal divino não me engana, e não
permito que ele seja tomado de mim. Prefiro rejeitar o mundo todo e a mim mesmo
do que duvidar de que meu Deus é correto e verdadeiro para comigo neste seu
sinal e promessa. Seja eu digno dele ou não, sou membro da cristandade,
conforme a palavra e o sinal deste sacramento. E melhor que eu seja indigno
dele do que Deus seja tido como alguém que falta com a verdade. Afaste-se,
diabo, caso me disser algo diferente".
Existem muitas pessoas que gostariam de ter
certeza disso. Ou apreciariam receber um sinal do céu sobre sua situação junto
a Deus. Gostariam de saber se estão predestinadas. Mas de que lhes adiantaria
se recebessem tal sinal e mesmo assim não cressem? Se não há fé, para que
serviriam todos os sinais? De que adiantaram para os judeus os sinais de Cristo
e dos apóstolos? De que adiantam ainda hoje os admiráveis sinais dos
sacramentos e das palavras de Deus? Por que as pessoas não confiam nos
sacramentos? São sinais corretos e foram instituídos, testados e provados por
todos os santos e comprovados como corretos por todas as pessoas que creram
neles e alcançaram o que eles revelam. Assim deveríamos aprender a reconhecer
os sacramentos: o que são, para que servem, como devem ser usados. Descobrimos
que não há nada maior sobre a terra que possa confortar tão agradavelmente
corações aflitos e consciências pesadas. Nos sacramentos, há palavras de Deus,
que servem para nos mostrar e prometer Cristo juntamente com todos os seus bens
(que são ele próprio) contra morte, pecado e inferno. Não há nada mais
agradável e desejável do que ouvir que a morte, o pecado e o inferno foram
destruídos. Isso acontece através de Cristo em nós, se usamos o sacramento
corretamente. O uso correto não é outra coisa senão crer que é assim; é a forma
como os sacramentos prometem e garantem através da palavra de Deus. Por isso é
preciso não apenas observar as três imagens em Cristo e com elas expulsar e
afastar as contra-imagens. Também é necessário ter um sinal certo que nos
garanta que assim nos foi dado: são os sacramentos.
18
No fim de sua vida, nenhum cristão deve duvidar
de que não está sozinho quando morre. Deve ter a certeza de que, como mostra o
sacramento, muitos olhos o observam. Primeiro, os olhos do próprio Deus e de
Cristo, porque o cristão crê na sua palavra e se agarra a seu sacramento.
Depois, os queridos anjos, os santos e todos os cristãos. Não há dúvida de que,
como mostra o Sacramento do Altar, todos vêm, como um só corpo, socorrer seu
membro (cf. 1 Coríntios 12.26). Ajudam-no a vencer a morte, o pecado e o
inferno e carregam todos junto com ele. Então se realiza com seriedade e poder
a obra do amor e da comunhão dos santos. O cristão também deve colocá-la diante
dos olhos e não duvidar dela. Vai tirar coragem disso para morrer. Pois quem
duvida disso mais uma vez não crê no respeitável Sacramento do Corpo de Cristo.
Neste são mostrados, prometidos e garantidos comunhão, ajuda, amor, consolo e
apoio de todos os santos em todas as necessidades. Se você acredita nos sinais
e nas palavras de Deus, ele olha por você, como diz no Salmo 32.8: Firmabo [assim
começa a tradução latina do v. 8]. "Sempre terei meus olhos sobre ti, para
que não sucumbas." Assim como Deus olha por você, também todos os anjos,
todos os santos e todas as criaturas fazem isso. Se você continuar na fé, todos
o sustentam em suas mãos. Quando sua alma vai embora, eles estão presentes e a
recebem. Você não pode morrer. Isso é testemunhado por Eliseu em 2 Reis 6.16s,
quando este diz a seu servo: "Não temas, mais são os que estão conosco do
que os que estão com eles". Embora os inimigos os tivessem cercado e não
vissem mais ninguém. Mas Deus abriu os olhos do servo. Então uma grande tropa
de cavalos e carros de fogo estava ao seu redor. O mesmo certamente acontece
com todo aquele que crê em Deus. Este é o sentido das seguintes passagens:
"O anjo do Senhor acampar-se-á ao redor dos que temem a Deus e os
redimirá" (Salmo 34.7); "Os que confiam em Deus serão inabaláveis
como o monte Sião. Ele ficará para sempre. Altos montes (isto são anjos) estão
em seu redor, e Deus mesmo está em derredor de seu povo, desde agora e para
sempre" (Salmo 125. ls); "Ele te confiou a seus anjos. Eles devem
carregar-te com as suas mãos e guardar-te, para onde quer que fores, para não
tropeçares nalguma pedra. Deves passar sobre as cobras e os basiliscos e pisar
nos leões e dragões (isto significa que toda a força e astúcia do diabo não te
afetarão). Pois confiou em mim. Quero redimi-lo; quero estar com ele em todas
as suas tribulações, livrá-lo e honrá-lo, saciá-lo com eternidade e revelar-lhe
minha graça eterna" (Salmo 91.11-16). Da mesma forma, o apóstolo (cf.
Hebreus 1.14) também diz que os anjos, que são incontáveis, sempre estão aí
para servir. São enviados por causa daqueles que serão salvos. Tudo isso é
grandioso. Quem vai acreditar nisso? Por isso devemos saber que são obras de
Deus. Elas são maiores do que alguém possa imaginar. Mesmo assim, ele as cumpre
num sinal tão pequeno, nos sacramentos, para nos ensinar a grandeza da
verdadeira fé em Deus.
19
No entanto, ninguém deve ter a pretensão de fazer
essas coisas com suas próprias forças. Devemos pedir a Deus, com humildade, que
ele crie e preserve em nós tal fé e compreensão de seus santos sacramentos.
Então agiremos com temor e humildade e não atribuiremos tal obra a nós
próprios, mas deixaremos a honra para Deus. Além disso, a pessoa deve implorar
a todos os santos e anjos. Especialmente a seu anjo [da guarda], à mãe de Deus,
a todos os apóstolos e queridos santos, em particular àqueles através dos quais
Deus lhe dedicou uma consideração especial. Mas a pessoa deve orar de tal forma
que não duvide de que sua oração será atendida. Ela tem dois motivos para isso:
em primeiro lugar, acaba de ouvir da Escritura como Deus lhes deu ordens (cf.
Salmo 91.l1s) e como o sacramento quer que devem amar e ajudar todas as pessoas
que crêem. É isto que devemos apresentar-lhes e é disso que devemos
adverti-los. Não porque eles não soubessem disso ou porque de outra forma não o
fariam, mas para que a fé e a confiança neles e através deles em Deus se torne
mais forte e alegre para enfrentar a morte. O outro motivo é que Deus
determinou que, quando queremos orar, creiamos firmemente que aquilo que
pedimos acontecerá e que haja um verdadeiro "amém". Esse mandamento
também deve ser apresentado a Deus, dizendo: "Deus meu, tu ordenaste que
pecamos e creiamos que a petição será atendida. É por isto que te peço e confio
que não me abandonarás e me darás uma fé verdadeira .
Além disso, durante toda a vida deve-se pedir a
Deus e a seus santos uma fé verdadeira para a última hora. Canta-se de forma
muito bonita em Pentecostes: "Agora pedimos ao Espírito Santo sobretudo fé
verdadeira para quando partirmos deste lugar estrangeiro para o nosso
lar", etc. Quando tiver chegado a hora da morte, deve-se lembrar Deus
dessa oração, além de seu mandamento e sua promessa, sem duvidar de maneira
alguma de que ela será atendida. Deus mandou que pedíssemos e confiássemos na
oração, concedendo ainda a graça de poder pedir. Por que então duvidaríamos de
que Deus fez tudo isso porque ele quer atendê-la e cumpri-la?
20
O que mais deve o seu Deus fazer por você, para
que você aceite a morte de boa vontade, não tenha medo dela e a vença? Ele
mostra e concede a você, em Cristo, a imagem da vida, da graça e da salvação.
Ele faz isso para que você não se amedronte diante da imagem da morte, do
pecado e do inferno. Além disso, Deus coloca sobre seu amado Filho a morte, o
pecado e o inferno do ser humano. Derrota-os e torna-os inofensivos para você.
Mais ainda: Deus expõe seu Filho ao tormento que morte, pecado e inferno causam
a você, ensina você a perseverar em tal situação e torna esse tormento
inofensivo e, além disso, suportável. Ele dá a você um sinal correto de tudo
isso, para que você nunca duvide disso, a saber, os santos sacramentos. Deus
manda seus anjos, todos os santos e todas as criaturas olharem com ele por
você, cuidarem de sua alma e a receberem. Ordena que você deve pedir isso dele
e estar certo de que será atendido. O que ele pode ou deve fazer além disso?
Portanto, você nota que ele é um Deus verdadeiro e realiza obras apropriadas,
grandes e divinas com você. Por que ele não imporia a você algo grande (como é
a morte)? Isso acrescenta um grande privilégio, ajuda e força, para mostrar o
que sua graça pode, como diz o Salmo 111.2: "As obras de Deus são grandes
e escolhidas segundo toda a sua benevolência".
Por isso temos que nos esforçar para agradecer
com grande alegria à sua vontade divina. Pois ele nos trata com graça e
misericórdia de forma tão maravilhosa, abundante e imensa contra a morte, o
pecado e o inferno. Também não devemos ter tanto medo da morte, mas louvar e
amar apenas a sua graça. Pois o amor e o louvor aliviam a morte em muito, como
Deus diz através de Isaías: "Vou fazer disparar a tua boca com o meu
louvor, para que não sucumbas" (Isaías 48.9). Que Deus nos ajude. Amém.
Um sermão sobre a
contemplação do santo sofrimento de Cristo
1
Algumas pessoas
refletem sobre o sofrimento de Cristo, revoltando-se contra os judeus, cantando
a canção do pobre Judas e criticando este pelo que fez. Elas não se restringem
a isso da mesma forma como estão acostumadas a acusar outras pessoas e a
condenar e manchar a imagem de seus adversários. Certamente isto não significa
refletir sobre o sofrimento de Cristo, mas sobre a maldade de Judas e dos
judeus.
2
Alguns descreveram diversos frutos e vantagens
provenientes da contemplação do sofrimento de Cristo. A respeito disso circula
por aí uma expressão enganosa de Santo Alberto (Alberto Magno, dominicano
alemão, 1193/1200-1280): É melhor refletir uma vez superficialmente sobre o
sofrimento de Cristo do que jejuar um ano inteiro, orar o Saltério diariamente,
etc. Há pessoas que vão cegamente atrás disso. Perdem, assim, o verdadeiro
fruto do sofrimento de Cristo, porque buscam seu próprio interesse. Por isso
ficam carregando consigo figurinhas e livrinhos, cartas impressas e cruzes.
Algumas pessoas chegam a acreditar que, com isso, estão se protegendo contra
enchentes, assaltos, incêndios e todo tipo de perigos. Crêem assim que o
sofrimento de Cristo, contra seu próprio caráter e natureza, deveria
oferecer-lhes uma vida sem sofrimento.
3
Essas pessoas têm compaixão por Cristo. Choram
por ele como se fosse um homem inocente. As mulheres que seguiram Cristo desde
Jerusalém fizeram isso. Elas foram advertidas por ele para que chorassem por si
próprias e por seus filhos (cf. Lucas 23.27s). São dessa categoria aquelas
pessoas que, em meio à reflexão sobre a paixão, passam a fantasiar. Acrescentam
muita coisa a respeito da despedida de Cristo em Betânia e das dores da virgem
Maria, o que também não lhes adianta muito. Por isso a pregação da paixão
prolonga-se por tantas horas. Sabe Deus se é mais para dormir ou ficar
acordado. Fazem parte desse bando também aqueles que aprenderam quão grande
vantagem traria a sagrada missa. Em sua ingenuidade, julgam que é suficiente
ouvir a missa. Somos levados a essa atitude por afirmações de vários mestres.
Eles querem que a missa seja agradável a Deus "por causa daquilo que foi
feito, não por causa daquele que o faz", por si própria, também sem nosso
mérito e dignidade, como se isso bastasse. Mas, na verdade, a missa não foi
instituída por causa de sua própria dignidade. Ela foi instituída para tornar
dignos a nós, e principalmente para refletir sobre o sofrimento de Cristo.
Quando isso não acontece, a missa transforma-se numa obra material e
infrutífera, por melhor que ela seja. De que adianta para você Deus ser Deus,
se não for um Deus para você? De que adianta comer e beber ser algo saudável e
benéfico, se não for saudável para você? Há o receio de que com muitas missas
não se conseguirá nada melhor, caso não se busque nelas seu verdadeiro fruto.
4
O sofrimento de Cristo é refletido autenticamente por aquelas
pessoas que o encaram de tal forma que se assustam sinceramente por causa dele.
Então sua consciência logo desanima. O susto deve ser porque você vê a ira
rigorosa e a dureza implacável de Deus para com o pecado e os pecadores. Nem
mesmo a seu único Filho amado ele quis dar por resgatados os pecadores. Só se o
Filho fizesse uma penitência por eles tão séria quanto aquela da qual ele fala
através de Isaías: "Eu o feri por causa do pecado do meu povo"
(Isaías 53.5). O que será dos pecadores, se até o Filho amado é ferido assim?
Só pode tratar-se de uma coisa grave, que não se pode dizer nem suportar, para
que uma pessoa tão grande e imensa se exponha à mesma e sofra e morra por isso.
Se você pensar bem no fundo que quem sofre é o próprio Filho de Deus, a eterna
sabedoria do Pai, você não deixará de ficar assustado. Quanto mais profunda for
sua reflexão, tanto mais assustado você ficará.
5
É necessário que você grave profundamente em seu
coração e que não duvide de forma alguma de que quem tortura Cristo é você
mesmo. Seus pecados certamente são responsáveis pelo sofrimento de Cristo. Como
um trovão, São Pedro atingiu e assustou os judeus ao dizer a todos eles:
"Vocês o crucificaram", etc. (Atos 2.37). Por isso, quando você vir
os pregos atravessarem as mãos de Cristo, pode ter certeza de que são obra sua.
Quando vir a sua coroa de espinhos, pode acreditar que são os seus maus
pensamentos; e assim por diante.
6
Quando um espinho fere Cristo, seria justo que
mais de cem mil espinhos ferissem você. Mais ainda: eles deveriam espetá-lo do
mesmo jeito, e até pior, por toda a eternidade. Quando um prego atravessa de
forma torturante as mãos ou os pés de Cristo, você deveria sofrer eternamente
com tais pregos e até piores. E o que também acontecerá àqueles que fazem com
que o sofrimento de Cristo tenha sido em vão para eles. Pois esse espelho
sério, que é Cristo, não mente nem brinca. Aquilo que ele anuncia será cumprido
totalmente.
São Bernardo ficou tão assustado com isso, que
disse: "Eu julgava estar seguro, nada sabia da sentença eterna sobre mim
pronunciada no céu, até que vi que o Filho unigênito de Deus se compadece de
mim, se apresenta e se submete à mesma sentença por mim. Ai de mim, se a coisa
é tão séria, não é hora de brincar nem de estar seguro". Assim, Cristo
ordenou às mulheres: "Não chorem por mim; chorem antes por vocês mesmas e
por seus filhos" (Lucas 23.28). Acrescentou a razão: "Porque, se em
lenho verde fazem isto, que será do lenho seco?" (Lucas 23.31). É como se ele
quisesse dizer: "Vejam no meu martírio o que vocês mereceriam e o que lhes
acontecerá". Neste caso , é verdade que se bate num cachorrinho para
assustar o cachorrão. Também o profeta disse: "Por causa dele lamentarão a
si mesmos todos os povos da terra" (Apocalipse 1.7). Ele não diz que
lamentarão a Cristo, mas a si próprios por causa dele. Da mesma forma também se
assustaram aquelas pessoas em Atos 2.37, quando perguntaram aos apóstolos:
"Que faremos, irmãos?" De igual modo canta a Igreja: "Eu o
rememorarei com afinco e assim desmaiará a minha alma".
8
Aqui é preciso exercitar-se muito bem. Todo o
proveito do sofrimento de Cristo depende de a pessoa chegar ao conhecimento de
si mesma. Depende de assustar-se consigo mesma e ficar abatida. Se a pessoa não
chegar a isso, o sofrimento de Cristo ainda não terá sido proveitoso para ela
como deveria. Pois a obra própria e natural do sofrimento de Cristo consiste em
levar o ser humano a ser idêntico a Cristo. Cristo é atormentado física e
psiquicamente de forma terrível em nossos pecados. Assim também nós devemos ser
atormentados na consciência pelos nossos pecados. Não se trata aqui de proferir
muitas palavras, mas de cultivar pensamentos profundos e levar muito a sério os
pecados. Preste atenção na seguinte comparação: vamos imaginar que um bandido
fosse julgado por ter estrangulado o filho de um príncipe ou rei e que você
estivesse completamente seguro, cantasse e brincasse como se fosse totalmente
inocente, até que torturassem você terrivelmente e provassem que você teria
levado o bandido a praticar o crime. Então o mundo ficaria pequeno demais para
você, especialmente se a consciência também ainda o abandonasse. Pois bem:
quando você pensa no sofrimento de Cristo, deve ficar mais angustiado ainda. Os
criminosos, os judeus, a quem Deus julgou e expulsou, foram os servidores do
seu pecado. Na verdade, você é aquele que, através do pecado dos judeus,
estrangulou e crucificou o Filho de Deus, conforme dissemos antes.
9
Tem
razão para ter medo aquele que se sente tão duro e insensível, que não se
assusta com o sofrimento de Cristo nem de ser levado ao conhecimento de si
mesmo. Não há como mudar a exigência de que você se conforme com a imagem e o
sofrimento de Cristo, nesta vida ou no inferno. Pelo menos quando você morrer e
estiver no purgatório, vai assustar-se e ter medo, sentir tudo o que Cristo
sofre na cruz. É cruel ficar esperando por isso no leito de morte. Por isso
você deve pedir a Deus que suavize seu coração e permita que você reflita sobre
o sofrimento de Cristo de forma proveitosa. Nem é possível que o sofrimento de
Cristo seja refletido com profundidade por nós mesmos, a menos que Deus o
derrame em nosso coração. Nem esta contemplação nem qualquer outra instrução
são dadas a você para que tome logo a iniciativa de finalizar tal contemplação.
Pelo contrário: você deve, primeiramente, buscar e pedir a graça de Deus, para
que você a realize através da graça de Deus e não por você mesmo. Por isso
aquelas pessoas mencionadas antes não lidam adequadamente com o sofrimento de
Cristo. Não invocam Deus para isso. Mas, com sua própria capacidade, inventaram
maneiras próprias de fazê-lo. Tratam o sofrimento de Cristo de forma totalmente
humana e infrutífera.
10
Quem observa o sofrimento de Deus por um dia, uma
hora ou mesmo apenas um quarto de hora faz melhor do que se jejuasse ou ouvisse
uma centena de missas. Essa meditação transforma a pessoa em seu íntimo quase
da mesma forma como o Batismo produz o renascimento. O sofrimento de Cristo
realiza sua obra autêntica, natural e nobre. Estrangula o velho ser humano,
espanta todo prazer, alegria e confiança que se possa ter em relação a
criaturas. Da mesma maneira como Cristo foi abandonado por todos, até mesmo por
Deus.
11
Essa obra não está em nossas mãos. Por isso
acontece que, às vezes, não a recebemos na mesma hora em que a pedimos. Mesmo
assim, não se deve desanimar ou desistir. Às vezes, ela vem quando nem a
pedimos, conforme a sabedoria e a vontade de Deus. Ela quer ser livre e não
presa. Então a pessoa fica preocupada e descontente consigo mesma em sua vida.
É bem possível que ela nem saiba que o sofrimento de Cristo está fazendo isso
com ela. Talvez ela não pense sobre o sofrimento. Da mesma forma, outras
pessoas concentram-se firmemente no sofrimento de Cristo. Mesmo assim, não
chegam ao conhecimento de si próprias dessa forma. Naquelas pessoas, o
sofrimento de Cristo é oculto e verdadeiro; nestas, é visível e enganador.
Assim Deus troca, muitas vezes, os papéis. Não refletem sobre o sofrimento
aqueles que refletem sobre ele, ouvem a missa aqueles que não a ouvem e não a
ouvem aqueles que a ouvem.
12
Até aqui falamos sobre a semana da Paixão e a
celebração apropriada da Sexta-feira Santa. Chegamos agora ao dia da Páscoa e à
ressurreição de Cristo. Quando a pessoa se conscientizou de seu pecado e ficou
muito assustada consigo mesma, é preciso cuidar para que os pecados não fiquem
desse jeito na consciência. Certamente, eles causariam um desespero total.
Assim como se manifestaram e foram reconhecidos por meio de Cristo, é preciso
derramá-los novamente sobre ele e aliviar a consciência. Portanto, tome cuidado
para não agir como as pessoas falsas. Estas ficam se mordendo e se destruindo
com seus pecados no coração. Procuram escapar através de boas obras ou de satisfação,
correndo para lá e para cá. Ou também por meio de indulgências, para poder
livrar-se do pecado, o que é impossível. Infelizmente, essa falsa confiança na
satisfação e nas romarias está amplamente espalhada.
13
Você tira o seu pecado de cima de você e atira-o
para cima de Cristo. Acredita firmemente que as chagas e os sofrimentos de
Cristo são seus pecados e que ele os carrega e paga por eles. Isaías 53.6 diz:
"Deus fez cair sobre ele o pecado de todos nós". São Pedro fala:
"Ele carregou em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados" (1 Pedro 2.24). E São Paulo diz: "Deus o
fez um pecador por nós, para que fôssemos justificados através dele" (2
Coríntios 5.21). Em passagens como estas e em outras você deve confiar com toda
a coragem. Quanto mais sua consciência atormentá-lo, tanto mais você deve
confiar nelas. Porque se, ao invés de fazer isso, você quiser tranqüilizar sua
consciência através de seu arrependimento e satisfação, nunca terá sossego. Por
fim, acabará caindo em desespero assim mesmo. Se permitimos que nossos pecados
atuem em nossa consciência, se permitimos que fiquem conosco e se os enxergamos
em nosso coração, eles são fortes demais para nós e vivem eternamente. Mas se
vemos que estão sobre Cristo e que ele os vence através de sua ressurreição, e
se acreditamos nisso com coragem, eles estão mortos e foram destruídos. Pois
eles não puderam permanecer sobre Cristo; foram engolidos por sua ressurreição.
Agora você não enxerga mais quaisquer chagas e dores nele, isto é, sinais de
pecado. São Paulo diz que Cristo "morreu por causa de nosso pecado e
ressuscitou por causa de nossa justiça" (Romanos 4.25). Isto é: em seu
sofrimento ele torna público o nosso pecado e assim o estrangula. Mas através
da sua ressurreição ele nos torna justos e livres de todos os pecados, desde
que acreditemos nisso.
14
Mas se você não consegue crer, deve pedir a Deus
por isso, como dissemos antes. Pois também o crer está exclusivamente nas mãos
de Deus. Ele também concederá o crer, ora abertamente, ora secretamente, assim
como dissemos a respeito do sofrimento. Mas você pode animar-se para isso: em
primeiro lugar, você não deve mais contemplar o sofrimento de Cristo (pois agora este já realizou sua obra e
assustou você). Você deve ir em frente e observar o amável coração dele,
considerando o enorme amor que ele tem para com você. Este amor obriga Cristo a
carregar o fardo tão pesado de sua consciência e seu pecado. Assim seu coração
ficará doce para com ele, e a confiança da fé será fortalecida. Continuando,
passa então pelo coração de Cristo para chegar ao coração de Deus. Ele vê que
Cristo não poderia ter revelado esse amor a você caso Deus, a quem Cristo
obedece com seu amor para com você, não o tivesse querido em amor eterno. Assim
você achará o coração paterno divino e bom. Como o próprio Cristo diz, dessa
maneira você será atraído por Cristo para o Pai. Então você passará a entender
as palavras dele: "Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho
unigênito", etc. (João 3.16). Reconhecer Deus de forma apropriada
significa: entendê-lo não pelo seu poder ou sua sabedoria (que são
assustadores), mas pela bondade e pelo amor. Então a fé e a confiança podem
manter-se, e a pessoa renasce verdadeiramente em Deus.
15
Seu coração deve apoiar-se em Cristo e tornar-se
inimigo dos pecados - por amor e não por medo do castigo. Alcançado isto, então
o sofrimento de Cristo também deverá ser um exemplo para toda a sua vida. Agora
vamos refletir sobre ele de outro modo ainda. Até aqui tratamos dele como um
sacramento que age em nós e que experimentamos passivamente. Vamos agora
tratá-lo como algo que também nós fazemos, a saber, da seguinte maneira:
Quando você for incomodado por sofrimentos ou por
uma doença, pense quão pouco isto é comparado à coroa de espinhos e aos pregos
de Cristo.
Quando você tiver que fazer ou deixar de fazer
algo que o aborrece, pense como Cristo, amarrado e preso, é levado de lá para
cá.
Se você é atormentado pelo orgulho, repare o
quanto seu Senhor é debochado e desprezado ao lado dos malfeitores.
Se a impureza e o desejo sexual atacam você,
lembre-se da dor de Cristo quando sua carne macia foi açoitada, golpeada e
ferida.
Se
ódio, inveja ou sentimento de vingança atormentam você, pense nas lágrimas e
nos gritos de Cristo quando orou por você e por todos os inimigos dele. Teria
cabimento se ele se vingasse.
Se tristeza ou outras infelicidades torturam seu
corpo ou seu espírito, anime o seu coração e diga: Ora, por que também eu não
poderia passar por uma pequena tristeza? Afinal, no Getsêmani, meu Senhor suou
sangue de tanto medo e tristeza. Servo insensível e detestável seria aquele que
quisesse ficar na cama, enquanto seu senhor tem que lutar na dor da morte.
Como você vê, em Cristo podem ser encontrados
força e alívio contra todos os vícios e defeitos. Nisto consiste a verdadeira
reflexão sobre o sofrimento de Cristo. São estes os frutos de seu sofrimento.
Quem se exercita no sofrimento dessa forma faz melhor do que se ficasse ouvindo
toda a pregação da paixão ou lesse todas as missas. Não que as missas não sejam
boas; é que sem essa meditação e sem esse exercício elas não adiantam nada.
Cristãos autênticos são aqueles que trazem a vida
e o nome de Cristo para dentro de sua própria vida, assim como descreve São
Paulo: "Os que pertencem a Cristo crucificaram sua carne, com todas as
suas concupiscências, juntamente com Cristo" (Gálatas 5.24). O sofrimento
de Cristo não deve ser tratado com palavras e coisas superficiais, mas com a
vida e com verdade. São Paulo nos aconselha: "Pensem naquele que sofreu tamanha
oposição das pessoas más, para que vocês sejam fortalecidos e suas mentes não
desanimem" (Hebreus 12.3). E São Pedro: "Assim como Cristo sofreu em
seu corpo, vocês devem armar-se e fortalecer-se com tal meditação" (1
Pedro 4.1). Mas essa contemplação caiu em desuso e se tornou rara. No entanto,
as cartas de São Paulo e São Pedro estão cheias dela. Nós transformamos a
essência numa ilusão e pintamos a reflexão sobre o sofrimento de Cristo apenas
nas folhas e nas paredes.
Minibiografia
1483 - 10 de novembro: Martim Lutero nasce em
Eisleben, na Alemanha, filho de João e Margarida.
1501 -
Cursa o primeiro ciclo das artes liberais e, ao 1505 concluir, recebe o título de Mestre de
Artes.
1505 - 2
de julho: Lutero promete ser monge.
17 de julho: Procura o Convento dos Eremi-tas
Agostinianos em Erfurt, para entrar na vida monástica.
1507 - 3
de abril: Lutero é ordenado sacerdote.
1507 -
Realiza seus estudos de teologia.
1512 - Recebe o título de Doutor em Teologia e é
designado para ser professor de Bíblia na Universidade de Wittenberg.
1513 -
Lutero é pregador no convento e na igreja 1514 de Wittenberg.
1517 -
31 de outubro: Lutero torna conhecidas suas 95 Teses sobre o valor da
indulgência, em Wittenberg.
1519 - No Debate de Heidelberg torna conhecida
sua
Teologia
da Cruz.
1520 - Publicação dos seus principais escritos,
entre
eles: Sermão sobre as boas obras, Da liberdade
cristã, Do cativeiro babilônico da Igreja e A nobreza cristã da Nação Alemã.
1521 - 3 de janeiro: Papa Leão X emite a bula de
excomunhão
de Lutero. 26 de maio: Publicação do Edito de Worms, que proíbe a divulgação e
o ensino da doutrina defendida por Martim Lutero. Lutero é banido. No
Wartburgo, ele traduz o Novo Testamento.
1522 - Distúrbios em Wittenberg.
Março:
Martim Lutero retorna para Wittenberg e restabelece a ordem, voltando a pregar
na igreja principal da cidade.
1525 -
Guerra dos Camponeses. Lutero manifesta-se sobre o acontecimento em escritos,
como: Exortação à paz, a propósito dos doze artigos dos camponeses da
Suábia, Contra os camponeses homicidas e salteadores. Discute com Erasmo,
de Rotterdam, no escrito De servo arbítrio.
13
de junho: Casamento de Martim Lutero com Catarina von Bora.
1529 - Martim Lutero publica o Catecismo Maior
e
Menor.
Os príncipes do Norte e de catorze cidades do Sul
da Alemanha protestam contra as decisões da Dieta de Espira para impedir o
avanço da Reforma. Daí surge a expressão "protestantes".
1 - 4 de outubro: Martim Lutero e Zwínglio
encontram-se em Marburgo, Alemanha, para um diálogo. Concordam em todos os
pontos da doutrina evangélica, menos na Santa Ceia.
1530 - 25 de junho: Leitura da Confissão de
Augsburgo, redigida por Felipe
Melanchthon, na Dieta convocada para esclarecer a doutrina de fé testemunhada
por Lutero e seus seguidores (pastores, comunidades e príncipes). A Confissão
de Augsburgo fica sendo um documento-base das igrejas luteranas no mundo.
1534 -
Publicação da primeira edição da Bíblia traduzida por Martim Lutero.
1537
- Martim Lutero escreve os Artigos de Esmalcalda, onde,
mais uma vez, o Reformador resume os pontos principais da doutrina cristã.
1539 - Publicação do primeiro volume de seus escritos
alemães. No mesmo ano, publica o escrito Dos Concílios e da Igreja.
1545 - Publicação do folheto Contra o Papado Romano
fundado pelo Diabo, escrito por Martim Lutero.
1546 - Martim Lutero viaja para Eisleben, para ser o
mediador de um conflito entre os condes de Mansfeld.
18
de fevereiro: Martim Lutero falece em Eisleben.
22
de fevereiro: Martim Lutero é sepultado em Wittenberg.
Contracapa
A Coleção
Lutero para Hoje tem como objetivo levar ao público em geral textos
significativos do reformador numa linguagem simples e atualizada.
Este volume —
Consolo no sofrimento - contém dois textos: Um Sermão sobre a Preparação para a Morte e Um Sermão sobre a Contemplação
do Santo Sofrimento de Cristo, ambos escritos por Martim Lutero em 1519.
Ao
longo de toda a sua vida, o reformador teve que aconselhar pessoas que se
debatiam com o medo da morte, com a dor e o sofrimento. Os textos de Consolo
no sofrimento são um exemplo disso.
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